A Associação Berço do Marabaixo da Favela, marabaxeiros , devotos e mantededores da Cultura Identitária Tradicional do Amapá, emitiram um manifesto sobre intolerância religiosa, no documento é expressado o repudio à conduta do membro do judiciário desse estado, que no dia 21 de maio, entrou em um barracão e apresentou comportamento desvalorizando a cultura do marabaixo.
Segue manifesto na íntegra
A Associação Berço do Marabaixo da Favela, marabaxeiros , devotos e mantededores da Cultura Identitária Tradicional do Amapá, repudiam com veemência a conduta do membro do judiciário desse estado, o senhor Décio Rufino, no dia 21 de maio deste ano, consagrado como Sábado do Mastro no calendário oficial do Ciclo do Marabaixo. Este senhor entrou no Barracão Tia Gertrudes, sito na Av. Duque de Caxias , 1203- Bairro Santa Rita, após a coordenação soltar uma pistola de fogos de artifícios para anunciar o início da programação, como é tradicional costume, e de forma áspera, utilizou-se de sua fala para diminuir a importância do evento, chamando de bagunça, desvalorizando assim nossa fé, tradição e a cultura do marabaixo. Além de coagir , intimidar e desrespeitar as famílias que lutam para manter viva essa tradição secular.
Lamentamos a forma truculenta como fomos abordados, sem diálogo, apenas ameaças e tentativa de intimidação, gritos e insultos com nossas famílias, cultura e legado histórico, que preservamos neste mesmo local há mais de 80 anos, no bairro Santa Rita, antes chamado de Favela. Lamentamos estarmos no ano de 2022 e ainda termos que lutar assim como nossos antepassados para preservar nossas manifestações de fé e tradição, uma prova de resistência do povo negro, que desde os primórdios são vítimas da intolerância com nossa cultura e desinformação a seu respeito.
Nossa luta por respeito não é atual, ela vem de décadas. São cinco gerações que sempre precisaram estar na defesa contra o preconceito e a desinformação. Nossas conquistas e reconhecimento são resultado de revolta com as humilhações e constrangimentos. Citamos aqui alguns fatos, como nos anos 90, para garantir a construção do Centro de Cultura Negra do Amapá, no bairro Laguinho, nossos pioneiros tiveram que defender sua construção enfrentando máquinas, autoridades e políticos com seus corpos e vozes, para que após noites de vigília, o CCNA fosse erguido. Outro fato de conhecimento público ocorreu 26 anos atrás, quando a casa da tradicional família do Mestre Pavão, no bairro Jesus de Nazaré, foi invadida também durante a realização do Ciclo do Marabaixo, por um operador de direito que cumpria missão no Amapá e ocasionou na prisão do Mestre Pavão, que revoltou a população e resultou na criação da Confraria Tucuju, criada para manter e preservar as tradições macapaenses.
Outro fato aconteceu nos anos de 2008/9, quando os festeiros e devotos que cumpriam os costumes do Ciclo do Marabaixo no Laguinho, em honra ao Divino Espírito Santo, e foram hostilizados na igreja São Benedito, pelo padre paroquial que tentou impedir a manifestação do marabaixo na igreja, como é o costume. Microfones chegaram a ser desligados para calar a boca e impedir que manifestassem sua indignação com o preconceito. Neste mesmo período, na Favela, este mesmo magistrado que agora tentou calar o marabaixo, insistiu em criminalizar o festejo acionando viaturas do Polícia Militar que ficaram estacionadas em frente ao barracão para intimidar os marabaixeiros. Estas atitudes isoladas do padre e do magistrado deram origem a várias manifestações públicas, e por intermédio da Assembleia Legislativa do Amapá, o dia 16 de junho foi reconhecido através de Lei, como o Dia Estadual do Marabaixo. Outra conquista que tivemos foi o tombamento pelo IPHAN do marabaixo como Patrimônio Imaterial do Brasil.
Ao longo dos anos escrevemos nossa história com o suor de nossos rostos, calos nas mãos, arrastrar dos pés, rodar das saias, mas também nos graduamos, fomos para as faculdades e escolas, e hoje podemos afirmar que as lutas são enfrentadas não somente como nossos avós e pais faziam, com sentimentos e instinto, mas também informações e conhecimento para que não nos sejam apontados os dedos como insubordinados, ignorantes e fora da lei.
Citamos como exemplo de nossa compreensão, flexibilidade e tendência para o diálogo e parcerias, o próprio Barracão da Tia Gertrudes, onde a partir do momento em que o bairro começou a desenvolver e ser habitado por famílias não tradicionais, e bem antes das leis que preservam o direito ao silêncio e à importunação, já haviam adaptado aos festejos a adoção de práticas condizentes com a preservação ambiental e da saúde e sossego, como a substituição do mastro de árvore nativa por um artificial, o plantio de árvores, o volume do som dentro do limite permitido, e o uso de fogos em quantidade limitada e horário estipulado.
Temos conhecimento a respeito das Leis Estadual e Municipal, assim como da Carta Magna, que prevê o respeito com as manifestações culturais dos povos tradicionais, e este princípio de autodeterminação está acima da intervenção de normas estaduais e municipais. Garantimos que em nenhum momento o objetivo foi de desrespeitar, extrapolar limites ou agredir vizinhos ou seus animais de estimação. Por estes motivos, manifestamos nossa indignação com a atitude isolada e truculenta com que fomos abordados e pedimos respeito, paz e diálogo para que sejamos todos protagonistas de uma sociedade tolerante, respeitosa e que valoriza suas raízes sem a necessidade de embates medievais e desnecessários.